terça-feira, 22 de janeiro de 2013

De lendas e fogões


Henrique de Freitas Lima é cineasta e 
consultor em cultura, esportes e terceiro setor

É possível que o primeiro ato do homem ao dominar o fogo tenha sido convidar seus semelhantes para partilhar o fascínio que todo humano sente por este fenômeno ouvindo uma boa história. Na era da convivência mediada pelos instrumentos virtuais, pouco mudou: os bons narradores seguem sendo tão imprescindíveis como sempre o foram. A essência de uma nação, os valores que a fazem única no concerto da humanidade, se encontram mais em suas narrativas do que nos tratados acadêmicos. 
Para quem se fez nos amplos horizontes do pampa, que em tudo conduzem à introspecção, a expressão da narrativa nas artes só veio com a tardia adesão ao Brasil e a superação do isolamento que marcou seus primeiros tempos. Como recém chegados ao mundo “civilizado”, os habitantes desta terra de ninguém ao Sul ora portuguesa, ora espanhola, tiveram primeiro de absorver todo tipo de cultura européia para tardiamente olhar para si e refletir em arte sua própria essência.  Como elemento a não ser desprezado, considerar que as novas elites urbanas precisavam se afirmar pela negação aos pioneiros rurais, tratados como “bárbaros”, ou, se quiserem, “grossos”.
Se não foi o primeiro a tratar do tema, até então atacado por doutores que disso nada sabiam,  coube ao pelotense João Simões Lopes Neto, hoje reverenciado na academia, dar a fundadora contribuição para que o universo dramático do campo brasileiro pudesse desfrutar de narradores comparáveis aos platinos. Do Cancioneiro Guasca, de 1910, em que compilou milhares de quadras poéticas e outros textos do imaginário popular, passando pelos Contos Gauchescos, de 1912, em que a essência do homem campeiro ganhou universalidade sem perder a identidade, até as admiráveis Lendas do Sul, de 1913, de cujas páginas a Salamanca do Jarau e o Negrinho do Pastoreio emergiram para virar ícones da nossa cultura, coube a ele transmutar em literatura da melhor qualidade o que já vicejava na beira dos fogões. Grandes nomes o seguiram e lhe renderam homenagem, como o Érico Veríssimo de O Tempo e O Vento.
Não é por acaso que a obra de Érico despertou o interesse do cinema, a mais completa das artes por absorver as demais como elementos narrativos. A começar pelas adaptações de estúdio dos anos 50, como O Sobrado, de Walter Durst, passando pelo Capitão Rodrigo de Anselmo Duarte e a versão da TV Globo para O Tempo e o Vento dirigida por Paulo José, grande sucesso de vendas internacionais, o escritor de Cruz Alta sempre esteve na pauta pela força de suas histórias. O ano que começa nos reservará a última tentativa de dar a Érico uma adaptação à altura de sua obra maior, O Tempo e o Vento, conduzida por Jayme Monjardim, um paulista apaixonado pelo Rio Grande a ponto de adquirir uma das nossas mais antigas sedes de estância para se dedicar à paixão que toma todo paisano endinheirado destes pagos: criar cavalos crioulos e ganhar o Freio de Ouro.
Coube a nós, que vimos tentando há muito contribuir para que uma dramaturgia ambientada no pampa tenha lugar nas telas em filmes como Tempo Sem Glória (1984), Lua de Outubro (1997) e Concerto Campestre (2004), adaptar os Contos Gauchescos para o cinema e TV. A versão para a tela grande estreou em 2012, ano do centenário de publicação da obra, e seguirá à disposição em 2013, preparando a chegada do projeto ao grande público pela TV.
Este  recorrido se justifica para externar a nossa alegria pela decisão do MTG de escolher como tema dos festejos farroupilhas deste ano o imaginário social do gaúcho, tal como se expressa nas criações do espírito, tendo a arte como a maior delas. Tarefa tão difícil como fascinante, esta decisão espelha uma verdade eterna: quem melhor expressa a identidade de um povo são as obras que ficam no imaginário coletivo, a servirem de guia para as novas gerações.

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